quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Richard Berlin - “Angústia não ajuda ninguém a ser genial”

O psiquiatra critica o mito dos gênios atormentados. Com tratamento médico, diz, eles seriam melhores
Marcela Buscato
A lista de artistas perturbados é extensa. do pintor Vincent Van Gogh, do século XIX, ao líder da banda americana Nirvana, Kurt Cobain, que se suicidou em 1994, e à cantora britânica Amy Winehouse. São exemplos que parecem corroborar a tese de que a angústia, às vezes causada por uma doença psiquiátrica, funciona como incentivo para grandes criações. Será que os tormentos mentais são amigos da genialidade? Segundo o médico americano Richard Berlin, de 58 anos, não. Ele acredita que um tratamento poderia ter tornado (ou tornar) os exemplos acima ainda melhores. No livro Poets on Prozac (Poetas no Prozac, em referência ao medicamento que mudou o tratamento da depressão), ele reuniu ensaios de 16 poetas premiados. Eles relatam como é difícil trabalhar convivendo com uma doença como a depressão. Para Berlin, um poeta nas horas vagas, as histórias desmistificam o tratamento psiquiátrico. “Ele não transforma ninguém em robô”, diz. “Só faz com que as pessoas atinjam seu potencial.”

ENTREVISTA – RICHARD BERLIM


QUEM É: É psiquiatra e poeta. Mora em Richmond, em Massachusetts, nos Estados Unidos
O QUE FAZ: Formado em Medicina pela Universidade Northwestern, tem um consultório na cidade de Lenox e é professor da Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos
O QUE PUBLICOU: Suas poesias são publicadas no Psychiatric Times, jornal americano para médicos psiquiatras. É autor do livro de poemas How JFK Killed My Father.


ÉPOCAHá alguma relação entre as doenças psiquiátricas e o aumento da criatividade? Richard Berlin – Antes de fazer o livro, eu até acreditava que sim. Hoje, estou convencido de que não há nenhuma conexão. No começo do projeto, pedi a muitos poetas que escrevessem um ensaio para o livro contando sua experiência. Eram artistas laureados, pessoas que ganharam o Prêmio Pulitzer (um dos mais importantes da literatura americana). Eles disseram que adorariam escrever s sobre o assunto, mas não tinham conhecimento de causa. Nunca haviam sofrido com uma doença dessas. Os poetas que aceitaram escrever para o livro porque já sofreram com alguma doença psiquiátrica contam como era difícil produzir algo de qualidade quando estavam doentes – angustiados, psicóticos, maníacos, sofrendo com alguma desordem alimentar ou dependência química. Só depois de se tratar foram capazes de criar com todo o seu potencial. A idéia de que doenças psiquiátricas dão mais inspiração ou fazem com que as pessoas se dediquem mais ao trabalho porque são obsessivas é somente um mito.


ÉPOCA Como esse mito surgiu?

Berlin - A criatividade começou a ser ligada à loucura na Grécia Antiga, quando os poetas acreditavam que eram visitados por musas, que os inspiravam. Eles entravam em um estado de êxtase, como se estivessem encantados ou possuídos. Os poetas românticos do século XIX ajudaram a propagar a idéia de que para escrever era preciso estar triste, melancólico. Esse imaginário perdura até hoje porque se tornou marketing. Anunciar-se como o artista triste, sozinho em seu quarto, abandonado pela pessoa amada, é uma boa estratégia para tornar seu trabalho mais atraente.


“Anunciar-se como o artista triste, sozinho em seu quarto, abandonado pela pessoa amada, é uma boa estratégia para tornar seu trabalho mais atraente.”


ÉPOCA – Alguns estudos tentam explicar esse mito cientificamente. Sugerem que pessoas criativas captam facilmente estímulos do ambiente. Por isso, seriam mais instáveis e propensas a distúrbios psiquiátricos. Eles estão errados?

Berlin – Não existe nenhuma evidência de que pessoas criativas são mais sujeitas a essas doenças. O melhor trabalho sobre esse assunto foi feito pelo psiquiatra americano Albert Rothenberg. Ele entrevistou e estudou cientistas ganhadores do Prêmio Nobel, escritores vencedores do Pulitzer. Descobriu que eles eram muito atentos às informações a que estão expostos no dia-a-dia. Mas em nada se encaixavam no estereótipo do artista criativo, que seria instável, dramático, emocional e temperamental. Eles eram pessoas que trabalhavam duro e estavam muito concentradas no trabalho. Mas não eram compulsivas.


ÉPOCA – Como explicar que tantas pessoas consideradas geniais, como o pintor holandês Vincent Van Gogh e o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, tenham sofrido com distúrbios psiquiátricos?

Berlin - São histórias de pessoas que não estão vivas, que não podem contar como se sentiam. A psicóloga americana Kay Redfiled Jamison tentou mostrar no livro Touched with Fire (algo como Tocados pelo Fogo) que personalidades importantes já mortas, como o poeta romântico Lord Byron e a escritora inglesa Virginia Woolf, sofreram de transtorno bipolar. O trabalho dela só ajudou a confirmar que continuamos usando figuras mortas para reafirmar a ligação entre criatividade e doenças psiquiátricas. Uma importante poetisa americana, Sylvia Plath, que se suicidou aos 30 anos por causa de depressão, escreveu: “Quando estou louca, isso é tudo o que eu sou. Não posso produzir nada”. Eu só fico imaginando que tipo de trabalho artistas como ela poderiam ter criado se tivessem vivido mais. Talvez, se tratados, eles pudessem ter sido ainda melhores.


ÉPOCA – Se medicados, os artistas não perderiam a matéria-prima de sua inspiração, a angústia e a tristeza? Berlin – Essa é uma crença comum. O poeta da língua alemã Rainer Maria Rilke escreveu: “Se eu perder meus demônios, perderei meus anjos também”. Mas nenhum dos poetas que escreveu para o meu livro concordaria com essa afirmação. Quando eles estavam com seus “demônios”, estavam sofrendo, não eram capazes de criar. Só puderam criar plenamente depois de fazer terapia, de ser medicados. Dá para perceber como o trabalho deles mudou depois do tratamento. Alguns se tornaram mais engraçados, brincalhões e criativos. Começaram a escrever em estilos diferentes, se permitiram experimentar mais, estavam menos inibidos.

ÉPOCA – Essas histórias podem ajudar outras pessoas? Berlin – O depoimento desses escritores ajuda a desmistificar o tratamento psiquiátrico. Há um grande estigma negativo sobre esse assunto. Muitas pessoas acreditam que o tratamento vai roubar a criatividade, deixar a pessoa sem iniciativa, como um robô. A história desses poetas mostra que o tratamento psiquiátrico pode fazer com que as pessoas atinjam todo o seu potencial.

ÉPOCA – Além de psiquiatra, o senhor também é poeta. Nunca sentiu que a tristeza pode ajudar a escrever? Berlin – Eu nunca sofri com uma dessas doenças, mas já passei por períodos de tristeza e ansiedade. Quando comecei a escrever, depois dos 40 anos, percebi que o único assunto que conseguia transformar em poesia era a doença do meu pai e sua morte, quando eu tinha 30 anos. Esse foi o tema do meu primeiro livro. Eu acredito que escrever me ajudou a controlar minhas emoções. Como diria o poeta inglês William Wordsworth, “Poesia é emoção relembrada em tranqüilidade”.