sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O cortejo

Era à tarde, meu cigarro estava no início e o café borbulhava de tão quente, naquela hora em que o sol esfriou, dando a falsa impressão de que estamos em um clima favorável, favorável o cacete! Dormi mal, acordei mal, acordei com alguém ausente, minha barriga doeu pra querer comer alguma coisa, mesmo não tendo fome, favorável é roubar a arma desse policial - montado em sua moto que se aproxima no canto da esquina, como quem quer parar o trânsito – e dar um tiro na própria cara por tanta vergonha e desprezo por si só.
Peraí! Ele parou o trânsito. Parou a moto e descansou o pé esquerdo ao chão para sustentar-se na moto. Um barulho ensurdecedor de uma buzina de caminhão ecoa no ar como quem proclama algo extremamente forte. É um caminhão do bombeiro – daqueles que todo garoto sonha estar em cima de um, como naquelas fantasias de apagar o fogo da vizinha, salvar vidas e blá - e uma fileira imensa de carros logo atrás dele, que atravessava na esquina acima e vinha em minha direção, uns homens de uniforme bege, em cima do carro vermelho, só pode ser a escolta que trouxe os perdedores – jogadores – da – seleção – de – futebol - brasileira com suas enferrujadas medalhas de bronze, ou melhor, poderia ser os vitoriosos – jogadores – desmembrados - brasileiros que ganharam ouro na china disputando bocha em cima de uma cadeira de rodas (aliás, eles são brasileiros e não desistem nunca). E quem teria essa brilhante idéia de trazer estas figuras a este fim de mundo? Aí tem coisa!
Uma tragada e um tímido gole de café. CARALHO! Ainda tá quente essa porra, quase que queimo a língua, assoprar um pouco mais pra esfriar é preciso.
O carro ainda está no outro quarteirão, parece que ele não quer andar, grita, grita, grita sua buzina melancólica. Mas parece não querer mover-se. Move-se lentamente, um tanto triste, se está triste por quê não fica parado? Algo lento e um tanto doloroso ir devagar, espécie de Cortejo Fúnebre. É isso, só pode ser isso, EPIFANIA! Só pode ser um cortejo de carne morrida. BINGO!
Estava corretíssimo, o carro – apaga - fogo cada vez mais se aproximava e conseguia já, enxergar uma coroa de flores no meio dos bombeiros, era um cortejo fúnebre mesmo. Logo pensei, e existi me indagando, será que um dia terei um cortejo como este? Com o meu caixão ao lado de verdadeiros homens que arriscam suas vidas para proteger a nossa? Pessoas chorando pela perda que lhes causei? Fileiras quilométricas de carros com seus vidros escuros e suas luzes acesas para mostrar que este carro está também deprimido e por isso que quer andar bem devagar sempre piscando suas mágoas, com pessoas de óculos escuros, escondendo o seu ar blasé, chorando por dentro, lembrando a cada instante vivido comigo.
Um trago e nada de café.
O carro se aproximava na esquina, o guarda na sua moto, sinalizava um Pare! Aos demais condutores que estão esperando o cortejo do bife passar para poderem dar continuidade nas suas jornadas diárias. Vejo o caixão e imagino o quanto que o bife já deve ter balançado lá dentro, nesta cidade existe muitos buracos, buracos enormes, um carro grande assim não precisa desviar de nenhum, mas o solavanco é impossível não sentir. Nota-se. O carro dobra na esquina para o meu lado direito, os bombeiros que nada tem a ver com o falecido, conversam aleatoriamente, rindo aos montes e olhando para a bunda de todas as gatinhas que passam pela esquina, sempre dando aquele olhar – secante e assoviando agudamente para chamar a atenção da mulher – codinome: cantada de pedreiro - que eles sabem que elas não irão olhar se caso for uma mulher de respeito, mas, todas elas olham e o que posso dizer? Tudo puta. O caminhão já havia completado a manobra e logo atrás dele, eu podia ver o primeiro carro. Tinha uma senhora idosa de óculos escuros com a sua mão ao peito, pausadamente soluçando. Na certa era a mulher do ilustre presunto. Pensei, logo existi me indagando, o que será que esta mulher sente ao perder o marido de tantos anos de jornada? Será que ela ficou triste realmente? Ou ficou feliz?
Posso até imaginar que ela possa estar um pouco alegre, por poder agora fazer aqueles cruzeiros maravilhosos da terceira idade, onde até o Instituto Médico Legal está presente para futuras emergências para com os titios, com as presenças ilustres de Dercy Gonçalves e sua gramática insuperável - também pudera, ela enterrou quase todos da academia brasileira de letras – para alegrar os viajantes com suas incríveis histórias de um Brasil ainda remoto, sem falar nos shows de Waldick Soriano cantando “eu não sou cachorro não” à cappela e Dorival Caymmi se indagando até morrer “O que é que a baiana tem?
Para tudo! Mas todas estas figuras já morreram, pelo o que me consta. Dona Morte depois de ter procrastinado por um século e mais um longo acréscimo, levou a Dercy e em seguida foi à vez do Dorival Caymmi, e eu jurando que Dorival Caymmi já tinha morrido faz tempo? Mas não, morreu um dia desses, quer dizer, morreu não, uma vez que baiano não nasce, estréia, então, digamos que ele saiu de cartaz. Já o Waldick Soriano, prefiro até nem comentar.
Uma tragada forte com enorme sorriso sordidamente impossível não soltar, um gole de café, agora está melhor, esfriou um pouco.
Na certa a velha não estava feliz mesmo, mesmo por que todos seus heróis de época já haviam inclusive seu falecido marido. Ao lado da velha deveria ser a filha mais velha que dirigia o carro, aquela que sempre a ajudou em todas as horas, sempre se preocupou com as questões familiares e jamais se opôs a qualquer decisão dos pais – codinome: pau – mandado – puxa - saco! Logo em seguida vem outro carro, sem vidro escuro, sem pessoas de óculos escuros. Na certa deveria ser o irmão – pobre do bife. Aquele que sempre admirou o irmão, mas, também sempre o invejou.
Os demais carros que passam estão cheios de sujeitos que muito ou nada têm a ver com o bife, alguns sofrem, outros, apenas sentem. Sinto também, mas é um sentir diferente, certa inveja, algo difícil de explicar, será que no meu cortejo estarão as pessoas que jamais tive apatia? Será que estarão as pessoas com as quais eu sempre tratei mal, só por tratar? Será que elas chorarão pela dor que lhes causei? E meus pais? Como eles irão se sentir? Fala sério, chega de morte, foda-se o cortejo, foda-se o bife, foda-se tudo, eu ainda quero viver...

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